Quinta do Vallado

João Paulo Martins

A prova de um vinho tão velho é sempre excitante. Dele esperamos concentração, riqueza de aromas, textura sedosa e final prolongado. Mas, quando os vinhos são extraordinários, dizem-nos mais: transportam-nos para um ambiente denso, onde a alquimia dos aromas de licores, de café, ceras, madeiras exóticas e couro nos preenchem a imaginação; na boca ostentam um corpo luxuriante de veludo, fresco mas concentrado, que se prolonga interminavelmente. É de vinos assim que se faz a gloriosa história do Douro.
Jornalista e Crítico de Vinhos - Portugal Ler Mais Ler Menos

João Pires

Ao abrir a garrafa, ao servir o vinho, ao contemplar a eternidade que este demora a fluir pelo interior do copo, percebe-se que se está perante algo do outro mundo. É imediata a perceção de que foram precisos longos anos para atingir este nível de perfeição.

O primeiro factor de espanto é a enorme viscosidade do vinho, que se apresenta envolvido num âmbar opaco, com um núcleo de mogno e uma orla de tonalidades verdes. A sensação é de que se está a testemunhar algo que só acontece uma vez na vida.

No nariz o primeiro impacto é intenso e profundo, dominado por avelãs, nozes e pecã brasileira. Complexo, rico e penetrante, revela notas muito discretas de chocolate negro, vestígios incomuns de vinagre balsâmico, assim como um toque de xarope de ácer.

A expectativa criada pelo nariz é enorme, e exige-se, compreensivelmente, um paladar explosivo com o qual o vinho corresponde na perfeição. Na boca o impacto é colossal, expansivo e generoso, vigoroso e amplo, desfilando notas tostadas de raspa de laranja, crème brûlée, figos, mel e ameixas maduras. Transporta suaves sinais picantes e apresenta uma acidez impressionante, munindo-o de uma frescura notável. Pleno e exuberante, há um sentido de solo no vinho, transmitindo uma sensação de que este detém um lugar no mundo. A complexidade e concentração dos sabores é tal que estes recusam-se a abandonar o paladar. Na memória ficarão perpetuamente.
Master Sommelier - Portugal Ler Mais Ler Menos

Justin Leone

Ao contemplar este líquido magistral, de cariz milenar, o que se revela mais inquietante é saber por onde começar. O que terá a dizer um simples mortal, com tão breve mandato neste planeta, sobre um monumento destes? Encontro-me perante um autêntico monólito, que enfrentou a impiedosa prova do tempo e emergiu, não ferido, mas revigorado.

De uma perspetiva meramente temporal, apenas ousamos imaginar a realidade do nosso mundo no momento da sua génese. Tudo o que este vinho viveu e os momentos históricos com os quais coexistiu, desde o dia em que foi colhido. Thomas Edison tinha acabado de registrar o pedido de patente para o que viria a ser o primeiro projector de cinema. A primeira criança recém-nascida é deitada numa incubadora. As primeiras bebidas são consumidas através de uma palha, enquanto decorre a primeira gravação de um concerto de música clássica. Jack the Ripper mantinha a cidade de Londres refém das suas atrocidades, e Van Gogh, de orelha recém-perdida, ainda não conhecia o mais recente e inovador instrumento de escrita, a caneta esferográfica.

Provar um vinho desta dimensão é uma oportunidade única. São momentos como este que nos fazem sentir, recordar, angustiar, ansiar e rejubilar. Eles forçam-nos... ou melhor, eles inspiram-nos a reflectir sobre o nosso passado. Com cada gota, caída do céu, uma transcendência. Uma viagem líquida. Uma experiência fora-do-corpo que faz ecoar momentos vividos e preciosos, há tanto tempo esquecidos.

O soar distintivo de um taco de ácer ao embater no forro poeirento de uma bola de baseball, que voava em direcção à minha luva recém-engraxada, durante meu primeiro jogo da little league. O meu prémio pela jogada da vitória: uma mão-cheia dos melhores caramelos de english butter, feitos pela minha mãe e pousados sobre a minha mão quente e minúscula, como um verdadeiro tesouro. Voltar a casa, ao calor de uma lareira acesa e ao envolver reconfortante do abeto e do cedro. As brasas incandescentes, cujo estalar balança nos meus ouvidos e cujo calor aquece o licor de ovo nos meus lábios. Os aromas ardentes de canela, cravo e anis que dançam à luz de uma chama minguante.

Os dias mandriões junto ao mar. O cheiro a café recém-torrado, tão meigamente amargo quanto as sementes de uma uva de Chambertin, que flutua da cozinha para se misturar com as brizas amenas e salgadas do oceano. As luxuosas notas de Amêndoa Marcona, em galanteio com mãos-cheias de figos secos, sultanas e ameixas secas decadentemente ricas, que interrompem contos sórdidos e alegres histórias enquanto os aromas de charutos cubanos ardem até ao amanhecer. Golos de Cognac envelhecido escoam língua-abaixo, como a mais madura tangerina. Uma estimulante dentada numa laranja vermelha, que invoca expedições de séculos passados ao índico-oriental. Estes sabores tão extraterrestres que mais parecem fábulas do que verdades.

Manhãs resfriadas passadas no castelo de um amigo, com paredes ricas em histórias, glórias e horrores, tal como os sabores contidos neste copo de um exemplar Vinho do Porto. Sabores que flutuam à minha volta como uma aura, uma presença, um sexto-sentido mais do que algo tangível. Relembro-me de caminhar pelos terrenos em dias de outono, e sentir a fragrância das folhas caídas que cobrem o solo musgoso. O orvalho reluzente na madeira. A tapeçaria secular que cobria os painéis da parede de mogno, cujo almíscar era tão cativante e intemporal quanto o seu legado.

Vinhos como este só conseguem ser verdadeiramente descritos como emoções, ao invés de palavras. Impressões de uma viagem fantástica, ao invés de factos estéreis, pontos fortes e potenciais. Momentos como estes nada têm a ver com a prova de um mero vinho. São momentos em que o tempo para e ao mesmo tempo parece que flui todo de uma vez. São experiências por si só, excepcionais e raras, para serem apreciadas pelos poucos privilegiados com sorte suficiente para o fazer. É claro que eu poderia gastar páginas e páginas a divagar sobre a beleza intoxicante deste espécime. No entanto, há uma verdade absoluta que me força à brevidade: a beleza deste vinho recai sobre o palato de quem o contempla. Já escrevi a minha história, chegou a altura de começar a escrever a sua.
Chef Sommelier - Munique - Restaurante Tantris Ler Mais Ler Menos
Notas de Prova